Monday

GUELRA URBANA

(Ísis Zisels)

Galopa urbes
Logos gago
Gânglio em guerra
Gole enterra
Lúgubres
Lagos

ESCÁRNIO

(Ísis Zisels)

O cerne do erro
Ruge no rosto
Rastro arranha
O roxo:
Carne exposta
Do afrouxo!

EROS SUBCUTÂNEO

(Ísis Zisels)

A busca das bordas
O ócio do laço
O viço das línguas
Os ossos bordados
Os deuses bramindo
As bocas borradas
As brumas dos beijos
A tez transbordada...

METEMPSICOSE

(Ísis Zisels)

Meu amor vem das Moiras,
Deusas crônicas;
Das fibras sintônicas,
Dos tecidos febris

Vapores de peles,
Anatólias hedônicas,
Olorosas hastes,
Semblantes de atriz

Ventre de Ceres,
Elêusis em glória
Cibeles: do sonho
À memória

Luas partidas,
Templos do Inferno
Outono inventando
As bocas do Inverno...

PÔR DO SOL, LEMBRANÇAS E RENOIR

(Ísis Zisels)

A varanda amadeirada da grande e solitária casa desfrutava de um suave arrebol. Podia-se vislumbrar a floresta da Gávea cintilando, acolhedora, sob o pôr do sol. O céu quiescente e as árvores frondosas transmitiam um frescor paradisíaco...

Do alpendre, a mulher contemplava a paisagem com certa ausência; o momento sutil onde o tempo para, os pulmões esvaziam-se e já não há tristeza, tampouco alegria. Apenas a vida suspirando lentamente... Porque sabemos, em nosso íntimo, que as coisas não existiriam se não pudessem suspirar...

Sentia-se numa tela de Renoir: as amendoeiras delicadas, o chá que lhe umedecia os lábios, as músicas que compunha ao cello, as pessoas e flores perfumadas virariam brumas algum dia. Também as memórias guardadas em sua alma enuvesceriam-se na alquimia do mundo... Domingos no bistrô, café com rosquinhas, Piaf, comentários sobre o Folha, um homem e seus tranquilos olhos através dos óculos, a cor cinza do cachecol que o envolvia, a cor cinza de sempre querer, sozinha, outro beijo estéril de cor...

Lembrara das obras que lera na juventude. Outrora, conhecera a paixão de Werther, a vontade de Ulisses, o canto de Ofélia enlouquecida pelo pai morto, os desejos e angústias de Madame Bovary...

Apesar de culpar o amor por fazê-la amar, o regalo róseo da tarde arrastava o passado aos dedos tímidos do poente. O sol da vida superava as dores causadas, pois havia mãos, olhos, boca, ouvidos, paisagens, partituras, o impressionismo de Renoir, quiçá outro nome quando os gestos amáveis dissolvem-se...

O SICOFANTA QUE SABIA TETAS E O PRESUNTO QUENTE

(Ísis Zisels)

- Eu quero esta, Jeremy.  Calibre 38. Uma belezura.

- O que aconteceu com a Volcanic do seu avô?   

- O matusalém fora enterrado com ela, meu chapa. Para poder estourar os próprios miolos, caso acordasse cardíaco no ataúde.

- Que loucura! 

- Ele era epilético e nauseabundo. Ninguém sabe se estava vivo ou morto. Mas cheirava feito o diabo quando o encontraram todo cagado, segurando o rádio de pilha e o distintivo de xerife.

- Sujeito estranho! Sempre bebia café com Single Malt na chafarica da Ursula. Balbuciava insultos ao rapaz jocoso do balcão e só exibia a dentadura quando espichava o semblante por causa dos tiques.

- Um asno, Jeremy, um asno! Quem, em sã consciência, derramaria Glenfiddich no expresso, como se fosse uma dose de qualquer porcaria? Watson o conhecera de outra época. Disse que o vetusto, desde mancebo, estragava as coisas boas da vida. Esculhambava os livros do irmão bastardo, açoitava cavalos e atirava nos colibris do pomar feito um calhorda. Após anos de calúnia, tornou-se responsável pelo condado para foder o rabo do Billy e de toda aquela gente despojada que você não se empenhou em ajudar...

- Vou te dizer, Wolf, o macróbio era alarife, mas possuía qualidades inusitadas...

- Talento para o pôquer, suponho? Já que a política não era o forte dos meus antepassados...

- Melhor! Identificava como ninguém um belo par de seios!

- Francamente, Jeremy! Não precisa ser um bom comedor de xoxotas para entender do assunto.   

- Não, Wolf. Algumas beldades insistem em disfarçar a forma e o volume com a meia-taça e o espartilho. O sicofanta, depois da demência, já não cumpria seu ofício. Quando perdeu a autoridade, desenvolveu, em compensação, um olfato aguçado para tetas. Descrevia cada uma delas sem espreitar, estrábico, os decotes. 

- Ora, não me faça rir de suas piadas!   

- Eu juro, Wolf!  As raparigas do vilarejo faziam filas, bem aqui, como se aguardassem as progressões de um astrólogo. Seu avô desafiava todas elas. Garantia-lhes enxergar qualquer mamilo tímido sob as malhas rendadas e bojos vultosos. Se falhasse a missão, estaria fadado ao jogo da roleta russa. 

- Que colhões!   

- As moçoilas, estupefatas com a clarividência, erguiam as blusas e desabotoavam os vestidos, eufóricas, comprovando, umas as outras, os detalhes revelados pelo mágico anacrônico.   

- Que história!   

- Pois foi o único milagre que testemunhei nesta vida... 

- Tem cigarro?   

- Pegue aqui. Quer fogo?

- [BANG! BANG!] Não gosto de falso testemunho, Jeremy. O cano fumegante é oportuno, a propósito. Lastimo não guardar um puto sequer no bolso desgastado de sua calça...

LÍNGUA DE GATO

(Ísis Zisels)

Gosto de gatos. Felinos são animais estéticos: possuem deslumbrante capacidade de embelezar qualquer ambiente. Desfilam feito obras de arte ambulantes entre obstáculos, adaptando-se aos mesmos. Sinuosos, precisos, compõe com elegância genuína o cenário onde habitam.

Conquistam determinado lugar não porque almejam submetê-lo, mas porque sabem aproveitar o espaço de modo que as coisas, ali dispostas, naturalmente, vinculem-se a eles. Assim, são, simultaneamente, cativados pelo território ocupado durante o jogo de interação.

Olhos atentos, misteriosos, desafiadores. Não temem o confronto com o outro. Ao contrário, deliciam-se a partir da intrigante experiência... Há um prazer malicioso na possibilidade de redirecionar, inadvertidamente, o espectador ao próprio abismo, atuando, ao mesmo tempo, como quem o espreita.

Vaidosos... Quiçá?  O que soa orgulho é a manifestação da dignidade perante o reconhecimento  da própria solidão. Característica também peculiar dos bípedes implumes, simbolicamente estruturados, dotados de desejo e fantasia...

A propósito, que patético: eu, aqui, humanizando os gatos! Logo eles que utilizam a língua áspera para a limpeza pessoal, enquanto procuro surpreender-me com representações de mim mesma. Mas a linguagem não me serve para lamber pelos e inventar sabores? Afinal, a curiosidade matou o gato?

FOTOGRAFIA

(Ísis Zisels)

Ela e o falo
O mundo deflora
Dentro aflora
A flor de fora

Muda tudo
Muda fala
Cor desnuda:
NONADA

Flagra a luz
Flui no tempo
Arte-fato
Olhar atento

ENTRELINHAS

(Ísis Zisels)

Escrevo para expurgar demônios!
Gritar ao mundo o que há entre colchetes!
Libertar errantes “erres”
Na túrgida resposta das amígdalas!

Escrevo para vomitar hipérboles!
Em crônicos “ais”
E cômicos “mas”,
Devorados por vírgulas,
Na síncope do tempo!

Escrevo para interpretar-me!
Render-me às reticências...
Exclamar volúpia e dor
Na divina loucura do amor!

Escrevo no espaço das orações
Sem aspas ou interrogações:
Nua, lúcida, plena...
No vazio silencioso que ultrapassa o verbo...

JÔNICA

(Ísis Zisels)

Sou um par de estrelas míopes
Amando a noite
Sem despi-la
Tenho veias microcósmicas,
Boca microcósmica
E isso me basta

Devoro átomos,
Respiro Ápeiron,
Desejo vida
E sangro

Habito o cosmo,
Orbito nua,
Percebo o sonho:
Sou Eu ou a Lua?

ÓSCULO

(Ísis Zisels)

Impele-me
Teu encanto:
A pele ao tato
Apela à fala
O tempo cala
Em canto

A língua (oculta)
Atenta ausculta
Tanto